Art 46. O sol queima de graça
Instagram Icon-facebook Youtube Economia e mercado por Jorge Krekeler No altiplano, ao norte da capital mexicana, há sol durante todo o dia por mais de
“Somos agricultoras, somos líderes, somos mães, somos esposas”, é o testemunho das integrantes do Comité de automonitoramento, uma articulação intercomunal da mulher rural de 18 comunidades dos departamentos de Santa Ana e Ahuachapán em El Salvador. Estas mulheres foram capazes de dar a volta por cima. “Diziam para nós: só os homens podem fazer casas, e então fomos construir casas”. E completam: “aqui estamos pondo fim ao patriarcado”.
Aprendemos o que era dos homens
Há 24 anos, a Cáritas da diocese de Santa Ana tomou a decisão de trabalhar pela igualdade entre mulheres e homens. O então bispo dali não concordava muito, mas Manuel Morán, que era o coordenador do trabalho na parte rural, começou o trabalho de formação e organização dirigido às mulheres no campo, evitando chamar a atenção durante os primeiros anos do processo. Até hoje a Misereor, junto com outras instituições, coopera financeiramente com a Cáritas Santa Ana para este trabalho.
Como fruto dos espaços de formação e de reuniões mensais em muitas das comunidades foram conformados os grupos de auto poupança. O comité de automonitoramento como espaço surgiu a partir das reuniões mensais das líderes desses grupos locais. Da mesma forma, durante o processo nasceram outros comitês de apoio para atentar a temáticas específicas; como por exemplo o comitê de apoio à família, oferecendo um acompanhamento das iniciativas produtivas e dos empreendimentos. Ao mesmo tempo foram conformados os comitês promotores. Estes foram os pontos de partida para grupos de auto poupança com um pequeno capital semente, facilitado pela Cáritas, estimulando a poupança das integrantes dos grupos. Logo que se comprovasse a permanência e disciplina na poupança pelo grupo, a pessoa participante pode pedir emprestado algum dinheiro do fundo do grupo, o que lhe permitirá realizar iniciativas produtivas, já seja de agricultura como de outros ramos como produção de roupa, cosmética e outros.
O comitê de automonitoramento faz um encontro mensal comunitário entre os grupos locais que permite a troca de saberes e sentires de seus integrantes, em sua maior parte mulheres que de maneira permanente se autoconvencem e decidem realizar ações.
São vários os temas abordados no marco das formações: agricultura ecológica, poupança, infância e juventude, moradia, iniciativas produtivas, tratamento de águas, cozinhas que economizam, entre outros. As formações acontecem junto com a prática, com visitas e intercambio de experiencias. Laura García, uma das integrantes mais dinâmicas do coletivo, lembra que: “Para os homens não parecia importante, nem as temáticas nem nossas reuniões, mas nós aprendemos o correspondia aos homens”. Jasmin Velasquez, outra companheira do comitê lembra o que aconteceu quando ela pôs em prática o que tinha aprendido do plantio de tomates. Os vizinhos, vendo os pés de tomate da Jasmin, diziam ao esposo: “A sua mulher te ganhou”
Para além dos comités de promotoras e dos grupos de auto poupança, o comité de automonitoramento é um espaço de encontro intercomunal que gera relações de afeto, solidariedade, irmandade, de libertação pessoal, autoajuda, diálogos, autoterapia e de escuta.
Sobre a auto poupança
As famílias em El Salvador geralmente poupam o pouco que podem poupar nos bancos tradicionais. Os bancos investem o capital captado e geram ganâncias que nunca chegam até os que poupam, sendo eles os/as donos/as do dinheiro. Os juros pagos pelo setor bancário pela poupança são mínimos, e inclusive em alguns casos deve-se pagar por ter o dinheiro guardado. As mulheres dos grupos de auto poupança tem rompido com essa tradição partindo de uma mudança pessoal: substituir o paradigma da poupança nos bancos tradicionais pela poupança comunitária. Guillermo Navarro da Cáritas Nacional partilha a sua reflexão: “Os grupos, ao serem constituídos na sua maior parte por mulheres, se torna um mecanismo para que elas poupem, adquiram uma independência econômica de seus maridos, estabelecendo com isto relações mais equitativas. Isto gera uma maior autoestima e segurança em si mesmas. Os grupos de auto poupança são meios que conseguem resolver necessidades cotidianas diversas das famílias que os buscam visando um crédito, más também são meios que despertam ou animam a criar iniciativas produtivas comunitárias”.
Sobre conhecimentos e cachoeiras
Durante o processo, que já tem mais de 20 anos, o número de grupos nas diferentes comunidades cresceu e não todos contam com o apoio direto da Cáritas e seus espaços de formação. Diante desta situação e graças à articulação intercomunal dos grupos, aglutinados no comitê de automonitoramento, optou-se por um modus operandi: com o apoio da Cáritas são formadas pessoas promotoras nos rubros de agricultura e moradia, sendo a maioria mulheres. As pessoas promotoras, além de pôr em prática o que aprenderam compartilham o conhecimento com as pessoas interessadas no nível de suas comunidades. E é graças a essas réplicas como cachoeira que os conhecimentos atingem um limiar muito maior de pessoas.
As mulheres concordam na percepção de que o nível de vida delas e suas famílias têm melhorado. Praticam agricultura orgânica, produzem o seu próprio adubo, realizam controle biológico de pragas. Surgiu uma cultura de fazer horta, apontando em primeiro lugar à soberania alimentar. Não se busca em primeiro lugar o plantio em grande escala e de monocultura. Ninguém queima o lixo, e a diversidade nas milpas[1] reflete o conceito do cuidado: cuidado da alimentação familiar, do meio ambiente e da comunidade.
Auditorias solidárias
Atualmente existem 35 iniciativas produtivas, a maior parte familiar, lideradas pela mulher. Trata-se de empreendimentos agrícolas e avícolas, produção de roupa, sapatos, cosmética, lingerie, entre outras. No marco das auditorias solidárias se realizam visitas de parte do comitê de automonitoramento para fortalecer as destrezas em contabilidade e marketing, finanças e organização.
O Comitê aglutina os diferentes grupos e iniciativas das comunidades em nível regional, garantindo sua representação; ao mesmo tempo, o comitê garante o acesso de todas e todos a novos conhecimentos e o feedback para os empreendimentos locais, dinamizando a vida comunitária local.
Ahuachapán e Santa Ana não são a exceção no êxodo rural: a maioria das pessoas jovens migra para cidade e para o exterior, preferencialmente aos Estados Unidos da América. As mulheres do coletivo mantêm dois pendentes que fazem referência a seus filhos. A partir da educação evitam reproduzir o papel clássico e patriarcal em seus filhos homens. Também e particularmente a partir dos grupos de auto poupança como núcleo principal no nível da sua comunidade, são oferecidas atividades para as crianças e adolescentes, envolvendo-os partindo de espaços lúdicos e atividades concretas nos processos de autogestão, soberania alimentar e agricultura sustentável. O desafio de tudo isso é corrigir a imagem negativa generalizada de que viver no campo é sinónimo de falta de oportunidades. No comitê, como nos grupos locais, já se vê uma segunda geração participando; a questão intergeracional em marcha plena e em movimento.
Sobre diversidade, abundancia e protagonismo
Diversos como os empreendimentos produtivos nas diferentes comunidades são também os grupos de auto poupança, a respeito do número de integrantes, seu volume de capital, seu volume de receita e suas atividades para além de poupança e empréstimo. Uma constante é que durante o ano o quase total do capital é investido como empréstimo e o dinheiro à vista obedece a um controle cruzado entre duas pessoas.
Há promotoras agrônomas que produzem tanto biol[2] como pesticida de Neem que é vendido. Diante o círculo infernal de insumos agrícolas caros e preços baixos demais de seus produtos, as mulheres optaram por priorizar a soberania alimentar diante uma venda desfavorável. Ena Vásquez compartilha: “Na minha comunidade vendemos os mantimentos produzidos por nós junto com outros artigos em um pequeno supermercado comunitário; a motivação para que compremos ali ao em vez de outros lugares é que comprando no nosso mercadinho obtemos a ganância para nós mesmas, e no fim do ano dividimos entre nós”. Dona Ena é chefe de família, tem mais de mil galinhas que põe e faz entregas da produção de ovos na sua localidade com a sua moto. O dinamismo de Dona Ena é algo comum entre as mulheres do Comitê: elas não param!
O comité com seus grupos locais, acompanhados por Cáritas da diocese, têm orientado seu trabalho e rascunhado seus futuros desejados a partir da leitura e convicção da abundância, superando a escassez como limitadora emocional e motivacional para traçar o futuro. Partindo desta abundância e pondo em prática sua convicção e capacidade de criar novas realidades têm se tornado rota e protagonismo das mulheres; ou, em palavras da Marta Julia Puente: “Somos mulheres liberais”. E empoderadas, sem dúvida.
Mapas mentais e receita para se realizar
Diante do convite de expressar em uma palavra só o que significa para as pessoas o processo do comité, surge uma chuva de palavras, algumas delas: “felicidade, conhecimento, tecido humano, unidade, qualidade de vida, esperança, fortaleza, independência, solidariedade, orgulho, empatia, entrega, potencial, harmonia e convivência”. E sobre as lições aprendidas quem está reunido partilha: “perseverança, ter fé, nutrição afetiva, desejo de superação, fortalecer autoestima, aceitar-nos como somos, tolerância”. E como moral da história: “O caminho não é fácil, mas também não difícil”.
Mensagens para o Futuro
1. “A partir do momento em que nos demos conta que somos capazes de muito mais do que sempre nos disseram, nunca mais paramos”. Quando novos conhecimentos e acompanhamento organizativo se cruzam com um protagonismo e autonomia das pessoas, nasce a autodeterminação e a prática de criar novas realidades.
2. A análise da realidade a partir de uma leitura e convicção da abundância, superando a escassez como limite emocional e motivacional abre novas perspectivas para traçar e atingir futuros desejados.
3. A experiencia mostra o quão factível é mover e transformar paradigmas: desde a redefinição dos papeis e superação do patriarcado até a reabilitação da imagem deteriorada da vida rural.
[1] NdeT: Milpa se refere a um agroecossistema mesoamericano de horta onde se planta milho, feijão e abóbora.
[2] Fertilizante orgânico
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O texto foi elaborado com base nas conversas com várias integrantes do comité de automonitoramento, entre elas, algumas membro da sua diretoria: Isabel Samayoa, Laura García, Cecilia Martínez, Vilma Esquivel, Concepción Pineda e Concepción Valle e as pessoas da Cáritas da diocése de Santa Ana, entre elas Rosaura Aguirre e Manuel Morán durante uma jornada na comunidade de La Coyotera, no departamento de Ahuachapán por Jorge Krekeler (coordenador do Almanaque del Futuro – facilitador de Misereor a pedido de Agiamondo) em julho de 2024. Muito obrigado a todas e todos pela sua abertura, carinho e interesse. Um agradecimento especial ao Gullermo Navarro da Cáritas de El Salvador pelo apoio e acompanhamento durante toda a estadia no país, gerando cumplicidade ao redor de tecer sinergias para contruir o futuro a partir do presente.
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Autores:
Jorge Krekeler | [email protected]
Design:
Gabriela Avendaño
Fotografias:
Caritas Santa Ana – Jorge Krekeler
Dados de contato a respeito da experiência documentada:
Comité de Automonitoreo c/o Caritas Diócesis de Santa Ana
[email protected] | facebook: caritassantaana
Edição: outubro de 2024
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