por Jorge Krekeler

Art 53. As mulheres camponesas precisamos nos valorizar

O que acontece quando quem busca uma transição rumo a modelos regenerativos de vida recebem uma renda básica durante 24 meses? A Guadalupe Pilapaça, companheira agricultora, produtora de cana e de apetitosos derivados, nos conta a sua experiência. A través da renda básica, Dona Lupita[1], junto com seu filho Dylan, pôde alugar a fazenda de seus pais, que são idosxs, evitando, assim que seja vendida. Agora estão encarregados de que sua produção seja cada vez mais diversa e nutritiva. A renda básica lhes permitiu inclusive contemplar a possibilidade de comprar o terreno e motivou Guadalupe a participar no governo local para impulsar uma agenda de gênero e produção que revalorize a mulher.

A propósito da Renda Básica Universal: a renda básica é uma quantia de dinheiro que é entregue de maneira periódica e sem condições à todas as pessoas residentes de uma comunidade para garantir sua subsistência económica. Ou seja, supõe-se que a RBU seja universal, individual e incondicional.

A Rede de Guardiões de Sementes (RGS) no Equador, aceitou o convite de Misereor, a agência alemã de cooperação pelo bem-estar e transição social, ecológica e econômica, para implementar um projeto piloto de renda básica no país. A RGS identificou 60 pessoas, que durante dois anos recebem uma renda mensal de 250 dólares, sem condicionamento sobre o uso desses recursos.

Uma particularidade do foco desse projeto é que têm sido as pessoas, guardiões de sementes, quem propôs colegas dos entornos locais, e quem tem demostrado interesse em avançar rumo a uma transição regenerativa, de sustentabilidade e do bem-comum.

Guadalupe nos espera na fazenda Santo Domingo, na paróquia de Gualea, localizada na bio-região do Chocó Andino, no noroeste de Quito. Ela faz parte de um grupo diverso de 6 mulheres que exploram processos regenerativos a partir da educação, do artesanato, da panificação, dos direitos humanos e da produção de alimentos. Dona Lupita, por sua vez, tem se concentrado em potenciar a produção e a diversidade de sua fazenda por meio de uma horta sintrópica e do trabalho com animais. Mas Lupe não se limita a seu projeto pessoal, mas procura a través de um papel na gestão e na representação pública derrubar prejulgamentos, para que a mulher agricultora seja valorizada e reparada.

O gênero tranversalizado

“Muitas coisas tem que mudar para que a mulher mude” explica Guadalupe, que também participou no processo, liderado pela Fundação Imaymana, para incluir a igualdade de gênero como eixo central na regeneração do território do Chocó Andino. Lá, conheceu a Nina Duarte, reconhecida pesquisadora de sistemas agroalimentares e atualmente sua mentora no marco do projeto de renda básica. A Lupita sempre se interessou por projetos comunitários e com o colchão financeiro que a renda básica oferece conseguiu se lançar ao governo local, onde foi eleita para a Assembleia Paroquial.

Mesmo que venha cultivando sua expertise na agricultura, foi encargada de uma diversidade de temáticas vinculadas à segurança ou à gestão de riscos; porém, Lupita procura sempre reconectar com iniciativas de produção e empreendimentos, com a esperança de melhorar as condições de vida. Já conseguiu uma abertura por meio do enfoque de gênero. Atualmente encontra-se realizando um diagnóstico das necessidades das mulheres na sua paróquia de Gualea. Pode parecer que as experiências e formas de vida são muito diversas. “O que mais marca as aspirações das mulheres camponesas”, observa Guadalupe, “é a proximidade ou a distância do centro urbano. Além do mais, existe uma semelhança geral, o trabalho das mulheres não é valorizado, e isso piora no campo”.

Com gosto de pneu

Aprendeu a fazer agricultura com seu pai, mesmo que de forma mais convencional. Faz seis anos Guadalupe começou a destilação de aguardente de cana de açúcar, um dos plantios principais da fazenda. “para destilar e conhecer os truques, precisa bastante paciência; já tentei muita coisa, também com licor de tangerina; e tenho a ideia de lançar um destilado de cor violeta, tal vez consiga adicionando lavanda”.

Agora, acompanhada pela sua equipe da Assembleia Paroquial, visita produtorxs de licores y nota que a maioria são mulheres. “A explicação que as pessoas se dão”, nos conta Lupita “é que são tarefas fáceis, suaves”. As habilidades técnicas e a experiencia que requer destilar não são valorizadas. “e não é suave, porque eu já o fiz e deu trabalho. Às vezes fiquei até a madrugada calculando, vendo que saísse bem, que não ficasse com esse gosto de queimado, como se fosse pneu, porque aparece um monte de coisas quando você não acerta a temperatura”. Trata-se de um ofício de muita paciência e precisão para alcançar a qualidade que merece.

Em diferença para os licores industriais” remarca Lupita “aquí trabalhamos com cana orgânica. Se você vai no campo, vai ver que o aguardente aqui é feito do fermento do suco de cana, e não destilando seus resíduos”. Guadalupe explica que pelo geral não se costuma calcular muito bem os custos da produção: “Não calculamos o custo adequado: não levamos em conta o animal que carrega a cana, o custo da lenha; então dizemos que custa um dólar, assim, porque não valorizamos nosso trabalho nem os esforços que fazemos dentro do lar”.

O valor de escrever

Um dos desafios principais, onde também tem um pé do machismo, é que “não estamos acostumadas a planejar”. Tradicionalmente, no campo, “quem lida com dinheiro é o homem. Quem faz render é a mulher”. Ao não existir um diálogo de planejamento, então se dispões dos afazeres, o que se faz, como e quando se faz fica separado das necessidades y potenciais. “Para isso” compartilha Lupita, “escrever é fundamental: eu penso que escrever e registrar o que estamos fazendo nos serve bastante inclusive para ver como estivemos antes, como estamos agora e como queremos estar no futuro”.

Novas gerações e mais equidade

“Enquanto houver estruturas patriarcais, não vamos superar esta situação”, explica-nos Guadalupe. Para ela é decisivo que a mulher no seu papel de mãe não continue incutindo em seus filhos homens esse comportamento clássico de papéis. No caso de seu filho Dylan, de 25 anos, está acontecendo diferente. Depois de conhecer a vida na capital, Dylan voltou para a casa da mãe e aos poucos está configurando seu projeto de vida na fazenda; a relação intergeracional é viável quando há respeito e liberdade, ida e volta.                       

Na nossa visita, Lupita nos leva para conhecer sua parcela sintrópica. “Trata-se de um projeto de 12 parcelamentos sintrópicos em diferentes pontos do território onde realizamos uma espécie de caravana, visitando a fazenda de cada participante, praticando mutirões e nos apoiando mutuamente na implementação das parcelas”. Estas plantações altamente diversos são um claro exemplo da visão de planejamento do tempo que vai tomar o crescimento das plantações, entre raízes, rasteiras, plantas medicinais, árvores frutíferas e madeiráveis. Ao em vez de sulcos trata-se com camas largas com alta densidade e variedade de plantas semeadas, com estratos diversos: mangará, cúrcuma, abacaxi, nabo, feijão, críticos e outros. A superfície é protegida com uma capa de mulch, restolho seco; na borda troncos de árvores que ajudam como adubo ao ser digeridos aos poucos por microrganismos.

A horta sintrópica não só oferece novas perspectivas de regeneração, ao propor ferramentas concretas para o desenho e planejamento da horta conforme o uso. Rompe também com a lógica de desmatamento e monocultura, lamentavelmente característicos da paróquia de Gualea, onde são vistos hectares inteiros só de babosa. Guadalupe comenta: “E depois de tirar a babosa, como fica o terreno? Não olhamos para o futuro e o que vai acontecer, mas o momento. O que queremos ganhar e o que eu quero ter, mas não o futuro e o que vou deixar”.

Ver para crer

Guadalupe prefere mostrar na prática que as coisas funcionam ao em vez de explicar só na teoria. Blanca e Ledy são duas mulheres jovens que trabalham com a Assembleia Paroquial na atenção aos idosos. “Eu ensino para as garotas no parcelamento sintrópico como funciona a horta, dado ideias de como podem trabalhar com as pessoas interessadas para iniciar pequenas hortas no pátio de suas casas”. Guadalupe lamenta que na zona tem se perdido bastante o costume de se apoiar mutuamente com mutirões. “Muitos conhecimentos ancestrais têm sido perdidos, por exemplo, sobre fertilidade do solo. O desafio e o trabalho coletivo, particularmente entre as mulheres”. Diante desse panorama compreende-se melhor a importância dos diálogos que nasceram entre quem participa no projeto da renda básica; são diálogos abertos para todas as pessoas interessadas; esses espaços grupais, gerados a partir do subsídio, ou seja, a RBU tem possibilitado que muitas pessoas tenham aceso ao conhecimento.

Em junho deste ano (2024) termina o pagamento mensal da renda básica. Guadalupe já tem o panorama claro para o tempo que vem depois: “As ganâncias geradas a partir do mel, rapadura, destilados e criação de porcos vai ser suficiente para pagar o aluguel e financiar um empréstimo para a compra da fazenda, ou pelo menos de uma parte dela. Não tinha imaginado isso no início” confessa Lupita. “Tal vez nós, o que chegamos a considerar é que como temos um apartamento no povoado e esta casinha de madeira é minha, o que conversamos com o meu filho é montar um empreendimento ali. Mas agora, pensando melhor e dissemos, não, melhor vamos ver como negociamos, vamos terminar este ano e vamos ver como fazemos para ficarmos com a fazenda”.

Mensagens para o futuro

1. A renda básica ajuda a dar passos rumo a futuros inesperados, porém desejados. Permite se dar a oportunidade de sonhar, planejar e caminhar para concretizar sonhos que nascem do indivíduo, mas estão nutridos pelo e apontam para o coletivo.

2. A partir de si mesmo, enraizado no ser mulher, na sua identidade cultural, sua origem e ancestralidade Guadalupe nos permite acompanhar sua transição autêntica; se dignificando como pessoa, revalorizando as mulheres e seu imenso trabalho no campo.

3. Com a renda básica, Guadalupe está trazendo seu futuro desejado para o presente, vivendo cada dia mais sonhos e utopias, contribuindo com mais equidade e igualdade. Seu entusiasmo e alegria são bons ingredientes para sustentar essa transição.

[1] NdaT: Lupita é apelido tradicional de Guadalupe.

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O texto foi elaborado com base na visita e conversas in situ com Guadalupe Pilapaña em Gualea/ Chocó Andino por Michelle Ruiz, coordenadora do projeto piloto RBU da RGS e Jorge Krekeler, coordenador do Almanaque del Futuro (facilitador de Misereor a pedido de Agiamondo) em março de 2024. Muito obrigado à Guadalupe pelo seu tempo e abertura diante da nossa visita. E obrigada também à Michelle pela coautoria e pela cumplicidade em capturar as trilhas da motivação.

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