Art 46. O sol queima de graça
Instagram Icon-facebook Youtube Economia e mercado por Jorge Krekeler No altiplano, ao norte da capital mexicana, há sol durante todo o dia por mais de
Caminhando numas férias pela rua Medellín rumo à parte cêntrica da cidade do México, compramos por acaso um pão. O pão não durou muito tempo, pois em família comemos num piscar de olhos. Voltamos para comprar de novo no mesmo lugar e foi quando o Iván nos convidou para conhecer a padaria, o moinho e nos falou algumas coisas sobre alguns dos tantos segredos de fazer pão artesanal. Desde então passou um ano, tempo em que aumentou a curiosidade do Almanaque do Futuro em cobrir esta experiencia motivadora que fala sobre pão verdadeiro e coerência autêntica.
Mais rústico do que ortiz
Sobre a minha pregunta, por sinal um tanto ingênuo, se seu sobrenome é mesmo Rústico, Iván ri: “Até a minha mãe me chama de Rústico; mas continuo sendo Ortiz de sobrenome”. Estando na padaria do Iván, completamente artesanal, pode-se buscar em vão congeladores, refrigeradores, máquinas grandes que trabalham a massa; o que há é mesas, alguns estantes, o forno, sacas de grãos de trigo e de farinha. Farinha moída na própria padaria com um moinho de madeira com grandes discos de pedra. “falando em fazer pão, são três temas relevantes: o plantio do grão, a moenda e o preparo”, explica nosso entrevistado. Iván, sexto de sete irmãos de pais cozinheiros, lembra da infância; seu pai dizia ao Elliot, o irmão mais novo e ao Iván: “Se vocês gostam de algo de comer, aprendam a preparar”. Foi assim que desde criança começou a conhecer a panificação. Depois o Iván virou mais rebelde e ao em vez de estudar gastronomia fez o curso universitário de audiovisual e começou a trabalhar no mundo da televisão. Mas antes estudou também gastronomia. “Ganhava muito bem, mas tudo girava em torno das marcas, ganâncias; naquela fase da vida era uma terapia fazer pão em casa, à noite”, lembra Iván.
Quando finalmente tomou a decisão de deixar o mundo da televisão, se dedicou primeiro a uma revista online de comida e produtos saudáveis. Gostou muito do que fazia, mas, mesmo assim, rompeu depois de um ano. Depois se dedicou em sociedade com alguns de seus irmãos, a um empreendimento de reciclagem de garrafas PET. Iván recolhia garrafas por toda parte com uma caçamba. Finalmente tomou a decisão de se dedicar ao que mais gostara desde o início: fazer pão, mas pão autêntico, pão artesanal, pão que cuida de quem o come.
Loja rústica de desejos
O Iván gosta de trabalhar com suas mãos. Quase todos os móveis, entre estantes e mesas da padaria foi ele que fez, junto com a equipe. Reformou a caçamba do reboque e vendia nesse ponto de venda móvel o que produzia: pão, massa e pastéis. Depois de um tempo uma amiga lhe deu de presente um forno para panificar e a sua mãe lhe deu um quarto para instalar a oficina. “o Pão é a história de amor da minha vida” confessa Iván e continua: “me sinto muito feliz e encontrei meu ideal de vida”. A padaria é para o Iván mais do que um negócio, um espaço para partilhar a vida. Até ter a padaria, o Iván fazia seu pão de massa madre e o vendia se deslocando na bicicleta. No trajeto, Iván se guiava por uma voz interna. “Quando criança, subia numa figueira e sentado tempos longos nela conversava com a árvore e dizia pra ela: me indique o caminho… a natureza nunca me abandona, mesmo quando renunciei ao mundo do audiovisual”.
Direto ao ponto
Com os produtos, o Iván foi aceito para vender num mercado orgânico, mas como duas pessoas não podiam vender o mesmo produto (para evitar a concorrência), o Iván vendia massas e pizzas. Mas não faltou quem conheceu o pão de massa madre que o Iván fazia e pedia para ele vender “por baixo dos panos”. Finalmente, pediu licença e obteve a autorização para vender seu pão no mercado. O Iván, já naquele tempo buscava se abastecer de grão de trigo orgânico para sua panificação. O Alejandro Aguirre, produtor de Puebla que vendia no mesmo mercado que o Iván, vendeu a ele o seu primeiro saco de trigo orgânico. Iván usou um moinho de milho para a moenda, e ficou uma farinha muito grossa. Essa farinha, com a massa madre, água e sal deu um pão que o Iván lembra: “Deu um pão que era uma pedra, uma rocha, o sabor era gostoso, mas mal dava pra mastigar”. A família dizia: “Volta para tua Praia!”, mas o Iván sentia que ele estava no lugar onde tinha que estar. “Farinha de milho é uma coisa, farinha de trigo é outra” explica nosso padeiro e continua: “Juntei meus escassos recursos e comprei um moinho de trigo”. Com esse moinho, o Iván conseguiu moer a farinha mais fina. No mercado orgânico fez amizade com o Abel, que o convidou para conhecer seu trigal em Tepetlixpa, estado do México. “Vamos de cavalo” dizia Abel à Iván. “Visitamos um campo de trigo em plena montanha, rodeado de árvores e vegetação e o trigo brilhava com os raios de sol como ouro.” Iván diz que essa visita era como subir de novo na sua figueira, sua confidente.
Os primeiros clientes fixos do pão do Iván eram sobretudo de pessoas estrangeiras. O Iván lembra dos comentários de muitos mexicanos a respeito do seu pão: muito pequeno, muito pesado, muito escuro! As pessoas estavam acostumadas com um pão branco, mole, com bolhas na textura, doce. “Entendi que existem dois tipos de padarias; umas que buscam rentabilidade e as vendas massivas, utilizando farinhas branqueadas com pouquíssima fibra e muita proteína e amido; e o outro tipo, digamos a padaria artesanal, trabalha com grãos e espécies de trigo antigo, moendo farinha integral, com muita fibra, baixa em proteína e pouco amido. Enquanto na panificação moderna há uma porcentagem muito alto de glúten, aproximadamente 17%, na panificação artesanal a porcentagem do glúten é sempre variável, pode oscilar entre 3 e 7%”. A alta porcentagem de glúten, que é um conjunto de proteínas, gera elasticidade que facilita o trabalho da massa; além disso ajuda a absorver água e ar. Isso ajuda a abaratar os custos da produção, ao mesmo tempo que a levedura ao em vez da massa madre permite gerar pães de mais volume. O que implica isto na digestão desse pão pelo nosso corpo não é segredo para ninguém.
Cuidado a partir do pão
“Não vou vender algo que não como para alguém”, palavras do Ivan nos cursos que ele oferece com bastante êxito para quem quer conhecer as suas artes da panificação artesanal. Há quem venha mesmo do Canadá ou da Dinamarca para assistir. Mas também tem quem é do ramo e assiste por curiosidade. “Lembro de uma pessoa que sendo dono de um dos moinhos industriais do México veio ao curso e me disse que queria conhecer os segredos de fazer pão artesanal”. Faz dois anos o Iván investiu num moinho, feito à mão na Áustria, trabalhado em madeira e grandes discos de pedra. Com esse moinho ele processa entre 30 e 60 toneladas de grãos de trigo orgânico por ano, abastecendo sua panificação e para a venda de farinha integral artesanal. Para entrar em sintonia: uma planta de moenda industrial precisa de uma hora para 60 toneladas. São mundos completamente diferentes. Levando em conta que o consumo de farinha de trigo por pessoa por ano no México é de 80 quilos, consumido em forma de tortilhas, de pão, e outros alimentos, dá para ter uma ideia da relevância desse ramo de dimensões industriais.
Via de regra neste mundo da padaria moderna, onde a grande maioria de nós compramos o pão, são as farinhas ultraprocessadas, eliminando a casca do grão, a fibra, adicionando branqueamento tal como peróxido benzoílo, proibido na União Europeia. “A chave está na comunicação”, diz o Iván. Um paladar consciente não se engana. Diariamente o José Luis ou o Iván, ou outra do total de 6 pessoas que sabem todas fazer tudo, põem meio quilo de migalhas do seu pão na calçada da entrada. Esse manjar convoca pombas, rolas e várias espécies de aves. Quando a vizinha se deu conta deste espetáculo, saiu e espalhou migalhas de seu pão industrial, mas seu convite não teve o mesmo efeito de atração nos comensais.
Reclamações pelo tamanho
Com o funcionamento do moinho novo, o Iván começou a panificar só com a farinha moída em sua padaria. Até então, ele usava uma porcentagem menor de farinha orgânica, mais fina, padronizada e comprada. Os pães com farinha cem por cento de trigo orgânico e moído com casca e fibras tinham o mesmo peso, mas menor volume, graças ao maior conteúdo de amido, proteínas e zero aditivos. “Iván, que pena que você diminuiu seu pão”, eram os comentários mesmo dos antigos clientes. De fato, por não usar mais farinha branca, o pão era agora de maior qualidade. Iván identifica três linhas de venda: o pão, a farinha integral moída do trigo orgânico e os cursos. “nos cursos falamos e conhecemos não só a técnica da panificação, mas também os obstáculos e perigos ao redor do pão, como agrotóxicos, substâncias geneticamente manipuladas e substâncias ultraprocessadas”. O problema é que apesar dos aditivos e substâncias nocivas, o pão, produzido a partir desses ingredientes é declarado como substância comestível.
“Para muitos dos meus alunos, um obstáculo é se abastecer de farinha integral de trigo orgânico. Tem alguns, que pela persistência conseguiram encontrar fontes de abastecimento como a Lorena em Toluca, Haydee em Veracruz ou Jesús, que abriram suas próprias padarias”. De fato, não é fácil encontrar produtores que optam por plantar e cultivar espécies antigas de trigo já que seu rendimento por hectare com entre 1,7 e 2,5 toneladas são inferiores ao de sementes melhoradas que alcançam 7 ou mais toneladas. Mas esses trigos melhorados têm menos fibra, mais proteína e amido. Fazer um pão artesanal dessas farinhas, que seja amigável com o aparelho digestivo e intestinal humano, onde o consumo de pão não se converte em outro pecado alimentício é um exercício de pouco sentido.
Padeiro cavernícola
“Algumas pessoas me chamam assim, mas eu adoro; aqui nós cuidamos mutuamente, os que vem comprar e os que produzimos e vendemos”. A maioria dos clientes são históricos e aderem ao sistema voz a voz, ampliando o círculo de clientes. Com um amigo, o Iván trabalha atualmente num livro que fala das coisas que deveríamos sim saber sobre pão. “Vai ser uma compilação de anedotas já que o meu projeto de vida foi documentado a partir das anedotas”. Muitos dos que vem sabem que comparar pão com o Iván é comprar sua paixão. “Meu sonho é comprar um campo de um hectare e documentar do zero a produção de trigo orgânico artesanal, cultivar respeitando biodiversidade, adubos naturais e sem químicos sintéticos, que esteja bem próximo de todos, para que possam visitar seguidamente”. Iván mora a sete minutos de bicicleta da padaria; não quer perder parte da sua vida no trânsito e está pensando seriamente em comprar uma nova bicicleta de carga para vender o pão de forma ambulante também.
“A gente que trabalha aqui, entre o José Luís, o Daniel, a Adriana, o Germán e a minha mãe, Rosa assumindo a questão da contabilidade, somos felizes”. Trabalham 5 dias na semana, de 8 a 9 horas por dia, nada de trabalho noturno. É um modelo de negócio, justo para o amigo cliente e para quem trabalha. Perguntado sobre o que fazem, o Iván responde sem delongas: “Fazemos pão feliz”.
Mensagem para o futuro
1. Coerência autêntica e cuidado mútuo, perceptível pelo nosso segundo cérebro, o intestino.
2. Quando a ética pode mais do que a estética: a experiência documentada nos mostra que aquilo que é artesanal – ancestral no ramo alimentício é algo tão valioso que deveríamos começar a compreender e apreciar antes que nosso corpo e saúde nos obriguem a recapacitar.
3. Não aguardemos a que a mudança de rumo aconteça na linha de negócios em torno daquilo que comemos. Comer é um ato político além disso de cuidado. Como consumidores temos o controle e nada melhor que começar com mudar os hábitos de algo tão cotidiano como o de comer: saudável, responsável e gostoso também.
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O texto foi elaborado depois de uma visita e conversa de forma muito cordial e extensa com Iván Ortiz, apelidado o Rústico na padaria mais aconchegante que o Almanaque do Futuro já conheceu, isso sem falar do pão espetacular. Para quem quer provar o pão rumo à felicidade: Medellín 265, Roma Sul, prefeitura Cuauhtémoc, entrada pela porta de madeira em Tlaxcala, uma esquina amarela. Nossos agradecimentos ao Iván por partilhar seus segredos sobre o pão e a felicidade com o Almanaque.
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