por Jorge Krekeler

Art 51. A lição após o desastre

Furacões são ciclones tropicais e consistem em tormentas com ventos extremos e chuvas diluviais. Todos já ouvimos falar sobre esses eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes devido às mudanças do clima, causados sem dúvida pelo impacto da nossa espécie sobre a Terra em tempos do antropoceno. Cooperación Comunitaria, uma organização não governamental mexicana e sem ânimo de lucro tem desenvolvido e prática em simetria junto de comunidades indígenas-camponesas trilhas rumo à reconstrução integral e a gestão social do habitat. Partindo de diagnósticos diante dos desastres surgiu uma metodologia com os moradores: em vez de ficar presa no beco sem saída das ajudas de curto prazo não aptas, revitaliza os saberes ancestrais locais, fortalecendo-os a partir de inovações tecnológicas baseadas na compreensão e respeito diante das sabedorias das identidades culturais e territoriais. O resultado desse trabalho coletivo fala por ele mesmo: capacidades de resiliência diminuem a vulnerabilidade dos povos na ruralidade mexicana.

Os desastres a partir do desastre

Otis é o nome do furacão que em outubro do ano passado (2023) com ventos de trezentos quilómetros por hora devastou o famoso balneário de Acapulco. Até esse ponto foi a notícia veiculada mundialmente; nem uma palavra sobre as consequências na região rural do estado de Guerrero, à sudoeste da capital; enquanto o governo federal mexicano lançava um programa de atenção ao desastre na zona hoteleira, autoridades governamentais de Guerrero chegaram inclusive a negar danos ocasionados por Otis nos campos, invisibilizando a ruralidade, parecendo até um defeito endémico do México.

Mesmo com a alta probabilidade de acontecimentos sísmicos de gravidade e de furações como Ingrid e Manuel em 2013 formados respectivamente no golfo do México e no oceano pacífico se unindo no continente e devastando zonas rurais inteiras do estado de Guerrero, os governos, tanto estaduais como o federal, carecem de metodologias certeiras para orientar seus programas de emergência de reconstrução. A cultura de construção rural nessa região de Guerrero e não apenas ali, conserva a terra como material de construção predominante. O foco dos programas governamentais de reconstrução ignora olimpicamente isso e segue cegamente lógicas urbanas empresariais, no lugar de materiais locais de construção usa os blocos e cimento para construir pequenas casas com lógicas urbanas, ao em vez de casas rurais, aptas para a forma de vida no campo. No lugar de permitir e fomentar a autoprodução entra a gestão do prestador de serviços, ignorando o que não pode ser ignorado: tempo de chuva, festas e mitologia, arquitetura participativa. Resultados dessa política errada não faltam: La Lucerna, uma mancha dessas casinhas, construídas no marco de um programa de reconstrução nas redondezas de La Soledad em Guerrero, visível de longe pelo colorido, nunca foi habitada; as famílias, aparentemente beneficiadas tem preferido reconstruir suas casas com tijolo de adobe, utilizando as casinhas, no melhor dos casos, como depósito ou armazenamento.

A obtusidade das políticas públicas no México pela falta de interesse para compreender as culturas, saberes locais e a antropologia da ruralidade parece ainda mais preocupante se levar em conta que a vulnerabilidade das comunidades rurais diante de desastres sócio-naturais vem aumentando devido a paulatina perda das capacidades e saberes tradicionais.

A luta contra o esquecimento

Não apresentamos respostas imediatas diante de desastres sócio-naturais mas buscamos contribuir com uma reconstrução integral”, explica Diana Cortese, que na Cooperación Comunitaria organiza o levantamento de recursos financeiros; o Jesus Alvarez complementa: “Os desastres não são naturais, mas sócio-naturais, já que o ser humano- graças ao seu sistema econômico- está envolvido nas vulnerabilidades existentes nas comunidades marginalizadas. Por tanto nos referimos a desastres sócio-naturais”. A instituição, constituída há 12 anos, mas funcionando de fato desde 2008, dedica-se à produção e reconstrução integral e à gestão social do habitat. Em seu percurso conta com acompanhamento da coalizão internacional pelo habitat – HIC pela sigla em inglês. O Enrique Ortiz, um dos personagens mais emblemáticos em relação ao tema do habitat pertence ao conselho de assessores da Cooperación Comunitaria. Trabalham na reconstrução integral e na gestão social pelo habitat, formação e incidência e mais recentemente em justiça climática. A partir de quatro categorias (territorial-ambiental, sociocultural, construtivo e produtivo) são encaminhados processos formativo-participativos que apontam para a autogestão coletiva de organizações e grupos. Todo o trabalho e processo obedece a uma sequência pedagógica de diagnóstico comunitário, design participativo, busca por financiamento, planejamento e organização, implementação, avaliação, uso e manutenção. Misereor e Global Nature Fund, ambos da Alemanha são dois do grupo de cooperantes que apoiam o trabalho desta coletividade que mantém trabalhos em zonas rurais de vários estados mexicanos (até agora em Guerrero, Hidalgo, Oaxaca, Yucatán e Chiapas).

Reunidos em La Soledad, o Eloy Espíndola, vizinho deste povoado nos conta: “sabemos derrubá-las, mas ninguém planta árvores. Cooperación Comunitaria nos fez lembrar como selecionar sementes e agora voltamos a plantar árvores… é importante envolver as crianças para que o esquecimento não tome conta”. As circunstâncias e fatores realmente não ajudam nessa corrida contra o esquecimento e exemplos do abandono de saberes tradicionais não faltam: a mistura da terra e do esterco ou fibras vegetais para fazer o adobe está se perdendo com a consequência de que a resistência do tijolo de adobe não é como antes; já não se sabe ler os bioindicadores que ajudam no prognóstico de chuvas e do clima pela perda de gestos simbólicos que garantem a transmissão intergeracional desses saberes e a leitura desses bioindicadores; os presentes estatais de sementes hibridas geram tentação de ampliar a superfície cultivável em detrimento das árvores, da capa de vegetação e da milpa (conhecida também como três irmãs), causando erosão nas zonas de montanha. A migração dos homens para a cidade ou diretamente para o país vizinho (EUA) por trabalho faz com que as mulheres, em função dos filhos, da casa e da agricultura não tenho tempo para trabalhos restaurativos como o reflorestamento; são poucas as pessoas que aprenderam de seus antepassados como cortar lenha das árvores, preferencialmente das diferentes espécies de carvalho que tem na montanha, sem derrubar completamente a árvore.

Melhorar a partir do que já existe

O Jesús Álvarez coordena os processos construtivos da Cooperación Comunitaria: “Nós desenhamos o que vamos construir juntos, com os moradores: a casa, ou um fogão poupador de lenha, resgatando e respeitando as culturas construtivas”.  O Adobe continua sendo o material de construção com plena aceitação social; como material para o teto, a lâmina galvanizada foi trocada pela telha de barro. “Aceitamos essas mudanças e trabalhamos a partir daquilo que existe. Ao em vez de insistir no uso de telhas, além de que não é mais produzido pela zona, trabalhamos com um isolante feito de palha e argila, posto por baixo das lâminas, mantendo fresco o interior da casa e amortecer o barulho quando chove”. Os fogões poupadores são construídos a partir do design de cada família, os fogões ajudam a economizar até metade da lenha e funcionam com uma chaminé, tirando a fumaça por um tubo do ambiente da cozinha. No design das casas a mistura dos tijolos de adobe tem sido melhorado, a fundação e sapatas das moradias são de pedra unida com cimento, cal e areia para evitar que as paredes sofram com a umidade.

Vedações ou vigas na coroa dos muros, de concreto armado ou madeira, formam, junto com o cruzamento dos muros de arrimo com contrafortes estabilizantes que garantem maior estabilidade e proteção antissísmica. “Buscamos analisar e compreender as causas dos desastres para mitigar as vulnerabilidades antes que atender as necessidades a partir das consequências” explica o Guillermo Andrade, responsável pela área produtivo-ambiental da Cooperación Comunitaria. O desmatamento nas regiões de montanha gera cada vez maiores problemas de erosão, diminuindo a capacidade de infiltração das chuvas no solo além de aumentar o risco de movimentos de massa com sismos e furacões. A tala de árvores, principalmente por causa de lenha para cozinhar, mas também para aumentar a superfície cultivável para produzir uma escala maior de plantios de milpa agrava a situação. O trabalho integral que se desenvolve na instituição junto com os grupos organizados de famílias indígeno-camponesas busca trabalhar sobre as causas, mitigando ou prevenindo vulnerabilidades. Fogões poupadores de lenha ajudam a diminuir a pressão sobre as árvores de lenha, ao mesmo tempo que se tem um viveiro com mudas de árvores de lenha, como também de árvores frutais e de café crioulo, tendo por objetivo gerar espaços livres de agroquímicos em que sejam produzidos alimentos e café sob sombra diversa, conservando ao mesmo tempo o bosque de pináceas e carvalhos e os buracos que têm na zona do bosque de neblina. Está sob consideração resgatar técnicas ancestrais de poda das arvores e obtenção de lenha. No mesmo sentido, há trabalhos orientados a gerar pequenas iniciativas produtivas que partem da trilogia da milpa (milho, feijão e abóbora) e do café como produto da zona para o mercado; paralelamente ocorre um acompanhamento constante às autoridades do Núcleo Agrário de Malinaltepec: se trata de autoridades tradicionais, eleitas pelas 34 comunidades que conformam o território agrário, para administrar todos os aspectos relativos aos bens naturais (água, terras comuns, etecétera).  Uma visita ao comissariado do núcleo agrário evidência a grande necessidade desse tipo de apoio uma vez que se constata uma gestão territorial ambiental fraca por parte das pessoas delegadas que fazem o que podem, mas que não contam com uma instância de assessoria e de expertise mais temática.

Incidência permanente

A Cooperación Comunitaria não perde nenhuma oportunidade para incidir. Na Universidade Intercultural do Estado Guerrero em La Ciénaga, a instituição abriu uma aula ambiental, promovendo a produção e a gestão social do habitat (construção com tijolos de adobe e reboco de barro, banheiros secos ou de compostagem, permitindo os serviços durante o tempo de seca e falta de água) e parcelas de sistemas agroflorestais. A Comissão Nacional de Moradia – CONAVI pela sigla em espanhol, não contemplava originalmente a construção com materiais locais e a produção social de moradia nos seus programas de moradia popular.  A Cooperación Comunitaria junto com outras organizações membros do HIC conseguiram uma aceitação por parte deste ente público federal sobre os temas em questão; porém não todos os obstáculos foram superados: a CONAVI e os programas públicos de fomento à moradia trabalham com financiamento individual. A Cooperación Comunitaria trabalha na canalização destes subsídios sem perder seu enfoque comunitário, o que supõe, com frequência, uma dor de cabeça. A arquitetura participativa é outro roteiro da incidência praticada pela instituição para conseguir obter uma sensibilização na formação curricular universitária. A filosofia do habitat é uma das linhas orientadoras do trabalho de pesquisa adiantado pela Cooperación Comunitaria dentro de suas possibilidades, fazendo verdadeiros malabarismos para conseguir compatibilizar com programas públicos de pesquisa e desta forma conseguir obter a sinergia e captar algum fundo para esta área. Com a incursão na temática da justiça climática surgiu uma nova linha de trabalho e de incidência, ampla e desafiadora, valha dizer.

Com isto, a Cooperación Comunitaria é uma aposta para a reconstrução dos saberes tradicionais, para prevenir ameaças e mitigar vulnerabilidades e para construir futuros a partir das identidades culturais e territoriais das comunidades. A parte boa é que esta aposta parece altamente contagiante.

Mensagem para o futuro

1. O resgate de saberes tradicionais em torno da gestão do território e do habitat contribui tanto para aumentar a resistência das estruturas como mitigar a vulnerabilidade diante das ameaças naturais ou diante dos desastres sócio-naturais.

2. Parece audaz que no momento dos desastres a ênfase seja posta no diagnóstico participativo para poder identificar as causas que geram estes eventos extremos, ao em vez de limitar-se a ajudas de emergência. Mas é a única via crítica possível para superar a mera atenção das consequências das ameaças sócio-naturais como furacões e terremotos e promover a resistência dos ecossistemas e a resiliência das populações.

3. A arquitetura participativa e o modelo de trabalho institucional que parte do respeito e compreensão das identidades culturais e territoriais com seus saberes, seus mitos, ritos e antropologias permitem horizontalidade, empoderamento e passos concretos rumo à sustentabilidade e a amigabilidade holística.

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O texto foi elaborado, com base numa visita à zona de La Soledad, Ciénaga e Malinatepec, vila do mesmo município do estado de Guerrero no sudoeste mexicano e nas conversas durante a estadia de três dias acompanhando a equipe de Cooperación Comunitaria por Jorge Krekeler (coordenador do Almanaque do Futuro – facilitador de Misereor a pedido de Agiamondo). Pela abertura, interesse e apoio de Cooperação Comunitária muito obrigada à Isadora Hastings e Diana Cortese, ao Jesús Álvarez, Guillermo Andrade, Ebert Morón e demais pessoas integrantes desta coletividade. Pelo tempo dedicado, a recepção e a confiança oferecida nos diálogos, um agradecimento ao Eloy Espíndola, à professora Érica e muitas outras pessoas em La Soledad, na Universidade Intercultural do estado Guerrero em La Ciénaga e aos personeros do comissariado do núcleo agrário de Malinaltepec.

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Autores:
Jorge Krekeler | [email protected]

Design:
Gabriela Avendaño

Fotografias:
Cooperación Comunitaria – Jorge Krekeler

Dados de contato a respeito da experiência documentada:

Cooperación Comunitaria
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Edição: maio 2024

 

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